sexta-feira, 9 de maio de 2014

IV. Frutos da Terra e do Homem






Em torno da interrogação na poesia de Jorge de Sena [II]

[Fica, neste post e seguintes, estudo inicialmente publicado (apenas texto), em 1998,
na revista MealibraCfr. RODRIGUES, 1998.]


[Continuação do post anterior, onde, por um lado, apresento a pertinência da interrogação na poesia do poeta e, por outro, indico estudos que se lhe referem. Assim, continuando:]

   Recorde-se, sumariamente, as características da interro­gação, também para distinguir a pergunta literal da pergunta retórica.
   Em sentido literal, uma interrogação, prosodicamente realizada numa frase com determinada entoação ascendente (representada na escrita pelo respectivo sinal de pontuação) é «a expressão de um tipo de acto ilocutório directivo, através do qual o LOC [locutor] pede ao ALOC [alocutário] que lhe forneça uma infor­mação de que não dispõe.» [MATEUS et al., 19892: 237]
   Trata-se, portanto, de um acto interpessoal, de um intercâm­bio dialogal. De um lado, temos um locutor que interroga e que, ao fazê-lo, deseja obter uma informação; de outro, temos um outro alocutário que, em princípio, se presume ser capaz de informar e por isso de responder. A própria noção de pergunta inclui, portanto, a de resposta. "Quem pergunta quer saber", sintetiza o velho ditado.
A característica principal de uma interrogativa literal é, pois, a de obrigar o destinário a uma resposta, estabelecendo, assim, entre os inter­locutores, uma espécie de obrigatoriedade, como esclarece Ducrot:

   Se não se faz intervir esta ideia de uma obrigação de res­posta imposta ao destinatário, o enunciado [...] já não é compreensível como uma pergunta, mas apenas como a marca de uma incerteza ou de uma curiosidade, ou ainda como forma retórica de exprimir a sua incredulidade [...]. O que carac­teriza a pergunta [literal] enquanto tal, é a exigência de uma resposta. [DUCROT, 1984b: 445]

   Como se sabe, nem todas as perguntas literais, totais ou parciais, obrigam a uma resposta verbal. Há perguntas que são or­dens, afirmações ou pedidos indirectos de uma acção, sejam elas acompanhadas ou não de formas de cortesia. A sua ocorrência tem a ver com a problemática dos actos ilocutórios, os quais es­tão in­timamente ligados aos mecanismos de construção e expli­cação do implícito. [Cfr. KERBRAT-ORECCHIONI, 19862]
           
   Valorizamos o carácter de obrigatoriedade de resposta que toda a pergunta literal institui, porque a chamada pergunta retórica não inclui, na sua definição, essa obrigatoriedade, antes a dispensando.
Não é só nos discursos ditos literários que se encontra esta forma particular de interrogação. Também no falar quotidiano. Também e sobretudo nos discursos políticos, religiosos e publi­citários, naqueles onde o orador se substitui ao ouvinte, na for­mulação dos seus problemas, incertezas, paixões, confli­tos, questões, desejos, sejam eles conscientes ou inconscientes.
   A retórica, define Meyer, «c'est la négociation de la dis­tance entre des hommes, à propos d'une question, d'un problème.» [MEYER, 1993: 22-23]

   No campo da chamada «retórica dos conflitos», como no campo da chamada «retórica das paixões»,

   [...] fazer uma pergunta para a qual já se sabe que não há possi­bilidades de opção entre responder afirmativa ou negativa­mente, já que a própria formulação do problema pre­figura uma das suas respostas (ou exclui ambas), é o ar­tifício que re­cebe o nome de pergunta retórica. [PLEBE E EMANUELE, 1992: 63].

   O facto, porém, de não exigir uma resposta, não quer dizer que ela não afecte tanto aquele que a formula como aquele que a recebe e reformula, ainda que em níveis e graus diferentes. É o velho problema retórico do ethos, centrado no orador, e do pathos, centrado no auditório. No meio fica o logos, o discurso, meio que é o meio que reúne, ou afasta, os interlocutores. Porque uma outra característica da pergunta retórica é a de ela ser formulada «com fins argumentativos ou como expressão da avali­ação que o LOC faz de um determinado estado de coisas.» [MATEUS et al., 19892: 238]

   Em termos mais literários, como figura de pensamento e or­nato frásico, terá sido Quintiliano (séc. I) o seu primeiro teorizador. O autor das Instituições Oratórias diz que há inter­rogatio (os gregos chamavam-lhe erótema, para a distin­guir do próblema; este formulava-se para ser resolvido, ou seja, obter uma resposta; aquele não necessariamente), há figura de in­terrogação, para Quintiliano, «quando se fizer, não para saber alguma cousa, mas para instar, e intimar mais o que se diz». E o retórico romano dá como exemplo, entre outros, o célebre «Até quando, Catilina, abusarás da nossa paciência?». E comenta, re­toricamente interrogando: «Porque quanto mais fogo tem isto, dito deste modo, do que se disséssemos? Ha muito tempo que abuzas da nossa paciencia.» E Jerónimo Soares Barbosa, autor da tradução das Instituições que consultamos, comenta, em nota, que as interrogações «são figu­radas» quando «tem ficção. O orador não he ignorante do que per­gunta, mas finge-se tal para dar mais fogo, e acção ao pensa­mento.» [QUINTILIANO, 1836: 186-187, e 186, nota (e)]
   Lausberg, que sistematiza em Elementos de Retórica Literária os aspectos essenciais da retórica clássica, refere, baseado no Górgias de Platão, que a pergunta retórica

   [...] fustiga os afectos, por meio da evidência de que é desnecessária uma formulação interrogativa. Por isso, não se espera uma resposta a essa pergunta, pois que ela é, já por si, a formulação próxima da exclamatio, de uma afirmação. [LAUSBERG, 19823: 259]

   Tradicionalmente, e resumindo, a interrogação retórica literária é entendida como uma «figura de paixão que consiste em interpelar o leitor ou o ouvinte, dando àquilo que é, de si, afirmativo uma forma de pergunta.» Por isso, «o leitor é provo­cado e levado a dar, no seu íntimo, uma resposta de assentimento ao que se lhe propõe.» E «quando as I[nterrogações] se sucedem, i. é, quando a I[interrogação] se combina com a repetição e a gradação, o efeito exprime, ainda com mais urgência, a intensidade da paixão.» Além disso, é considerada como «a figura rítmica mais importante do es­tilo coloquial e do estilo patético», servindo para dar «relevo e in­teresse ao que se escreve ou se diz.» [Cfr. MENDES, 1970]
   É pelo facto das interrogações retóricas dispensarem res­posta que se diz que elas ocorrem sobretudo em contextos (o con­texto, real ou fictício, é sempre indispensável à sua con­cretização), onde os destinatários não têm voz activa. Daí que elas não sejam tão inocentes como por vezes se pensa, inclusive as literais. Repare-se nesta advertência de Ducrot:

   [...] tendo o ar de respeitar a liberdade do destinatário, ela [a interrogação, evidentemente] pode, no entanto, impor-lhe ideias prévias. Particularidade esta que torna suspeitas nu­merosas "sondagens de opinião", e que leva a desconfiar tam­bém da "pedagogia interrogativa" de inspiração socrática. Porque as perguntas do professor afirmarão geralmente tanto quanto perguntam. Daí os limites da "maiêutica", parto que pode ter certas características de inseminação. [DUCROT, 1984a: 401]           

 [Continuará]



Bibliografia (Apenas a referida nesta parte).
DUCROT, O., 1984a: «Pressuposição e Alusão», in AA.VV., 1984: Linguagem-Enunciação. Enciclopédia Einaudi, vol 2. Lisboa IN-CM; pp. 394-417 (Trad. do art. de Henriqueta Costa Campos).
------------, 1984b: «Actos linguísticos», in AA.VV., 1984: Linguagem-Enunciação. Enciclopédia Einaudi, vol. 2. Lisboa IN-CM; pp. 439-457 (Trad. do art. de Henriqueta Costa Campos).
KERBRAT-ORECCHIONI, C., 19862: L'Implicite. Paris: Armand Colin.
LAUSBERG, H., 19823 (1967): Elementos de Retórica Lietrária. Lisboa: Gulbenkian (Trad. de R.M. Rosado Fernandes).
MATEUS, M H.M et al., 19892: Gramática da Língua Portuguesa. Lisboa: Caminho.
MENDES, J., 1970: «Interrogação», in VERBO-Enciclopédia Luso Brasileira de Cultura, vol 10. Lisboa: Verbo.
MEYER, M., 1993: Questions de Rhétoriques. Langage, Raison et Séduction. Paris: Librairie Générale Française (Le Livre de Poche).
PLEBE, A. & EMANUELE, P., 1992 (1989): Manual de Retórica. São Paulo: Martins Fontes (Trad. de Eduardo Brandão, revista por Neide Luzia de Rezende).
QUINTILIANO, 1836: Instituições Oratorias. Coimbra (Trad. e notas de Jeronymo Soares Barbosa).
RODRIGUES, D. [F.], 1998: «Em torno da interrogação na poesia de Jorge de Sena». Mealibra (Revista de Cultura), n.º 1/2, série 3. Viana do Castelo: Centro Cultural do Alto Minho; pp. 21-27.
SENA, J., 19772: Poesia I. Lisboa: Moraes.



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