quarta-feira, 7 de maio de 2014

IV. Frutos da Terra e do Homem






Em torno da interrogação na poesia de Jorge de Sena
[Fica, neste post e seguintes, estudo inicialmente publicado (apenas texto), em 1998,
na revista Mealibra. Cfr. RODRIGUES, 1998.]


Por que pergunto, se já sei por quê?
SENA, 19772: 210
  
O recurso à interrogação é uma constante na poesia de Jorge de Sena. Raro é o poema em que o poeta não apresenta, pelo menos, uma realização interrogativa, não faltando poemas totalmente constituídos, construídos, por uma sequên­cia de interrogações. O próprio Jorge de Sena, sempre leitor e crítico atento também da sua própria arte poética, o afirma:

[] acontece que o homem – se pode viver e criar ab­stracções – é pelo rosto e pelos seus gestos, e pelo que ele, com o olhar transfigura, que podemos, interrogativa­mente,  incerta­mente,  inquietamente,  angustiadamente,  co­nhecer-lhe a vida. E, se não fora a poesia olhando a História, nenhuma vida em verdade conheceríamos, nem a nossa própria. (SENA, 19882: 157. Destaque meu.)

Ou, então, no poema

DIZ-ME, SILÊNCIO…”

Diz-me, silêncio, em ruídos permanentes
singelamente confusos primitivos –
que mão estender à voz que ouvida não
fala comigo ou com ninguém, silente:
Devo tocar como quem chama e pede?
Ou agarrar o que não fala ainda
senão por gestos quase imperceptíveis?
Esperarei perguntas sem resposta?
Responderei perguntas não faladas?
Diz-me, silêncio, em ruídos de que és feito,
como entender-te quando és corpo humano? [SENA, 19892: 217]


           E no IV soneto da «Heptarquia do Mundo Ocidental», que con­tinua os três sonetos anteriores, todos eles marca­dos também por várias interrogativas, onde a própria con­strução e organização do poema é já de si reveladora do espírito inquieto, interrogativo, angustiado e dialéctico do poeta.

Mas que se trai traindo? Que traís
quando trocais por nada o nada que é
ser-se fiel ao que passou por nós?
A mim traís? A vós? Aos nomes falsos

em que se oculta o roubo do existir?
E que passou? Que não passou? Que foi
roubado ou não roubado a cada instante?
Traís a cada instante? Que traís?

Fiel eu serei sempre a uma resposta.
Mas, respondendo, tendo estas palavras
que negam outras como quem se nega

a não negar senão o que não tem,
responderei àquilo que pergunto.
E sei que sou fiel não perguntando. [SENA, 19892: 41]

          Apesar desta frequente utilização da interrogação, apenas alguns críticos notaram, apenas anotaram, esta indelével marca da poesia seniana. Entre os inúmeros estudos dedicados à obra do autor, nenhum encontrámos que trate desenvolvidamente esta problemática. E entre aqueles que apenas o (a)notam, só dois o fazem explicitamente.
            Frederick G. Williams, amigo e colega do poeta na Universi­dade de Santa Bárbara, Califórnia, refere a utilização da «pergunta retórica», como uma das «influências barrocas» na poe­sia de Sena, para depois, ao proceder ao levantamento dos recur­sos estilísticos, verificar que ela «aparece repetidas vezes dentro do mesmo poema em quase todos os poemas dos livros todos». O crítico apresenta, de seguida, alguns exemplos e por aí se fica. [Cfr. AA. VV., 1981: 111 e 115]
           Outra referência, breve, mas procurando dar já uma inter­pretação semântica e pragmática da interrogação seniana, encontra-se em Fátima Freitas Morna:

Lentamente, ao longo dos anos e dos textos, a poesia de Jorge de Sena vai cumprindo a sua vocação especial de voz entre vozes. Depois de uma certa euforia declarativa, a sua modulação indagativa encontra a magistral formulação do poe­ma “Tendo lido uma carta…”:

                                   “Apenas sou pergunta,
                                    e, sendo eu, me esqueço ao perguntar.”

Poesia que interroga, voz funcional ocupando um lugar no mundo, sempre oficiante, sempre nostálgica do diálogo, ansiosa do grande espectáculo que, enquanto discurso, é. [MORNA, 1985: 31-32]

            Poesia interrogativa e interrogante, pois, que é um permanente questionar o homem e o mundo, o sujeito poético e a poesia, as suas inter-relações, as suas interacções. Com interrogações retóricas, como não poderia deixar de ser. Porque as outras, as interrogações literais, exigem resposta imediata que não fomenta o diálogo nem o questionamento. Interrogações retóricas, porém, não apenas no sentido tradicional de “figura de paixão”, mas também e sobretudo como figura de conflito, ou seja, de pensamento retórico original (originário), que provoca o dizer e o pensar, os desenvolve e organiza em discursos.

[…] o moderno pensamento retórico é um pensamento heurís­tico, isto é, inventor e descobridor, mas sem verdades para inventar nem para descobrir. Sua heurística é tão-somente uma heurística de instrumentos para pensar e para falar. [PLEBE & EMANUELE, 1992: 185-186]

[Continuará]


Bibliografia (Apenas a referida nesta parte).

AA. VV., 1981: Studies on Jorge de Sena [...]. Santa Barbara: Bandanna Books.
MORNA, F. F., 1985: Poesia de Jorge de Sena. Lisboa: Comunicação.
PLEBE, A. & EMANUELE, P., 1992 (1989): Manual de Retórica. São Paulo: Martins Fontes (Trad. de Eduardo Brandão, revista por Neide Luzia de Rezende).
RODRIGUES, D. [F.], 1998: «Em torno da interrogação na poesia de Jorge de Sena». Mealibra (Revista de Cultura), n.º 1/2, série 3. Viana do Castelo: Centro Cultural do Alto Minho; pp. 21-27.
SENA, J., 19772: Poesia I. Lisboa: Moraes.
----------, 19882: Poesia II. Lisboa: Edições 70.
----------, 19892: Poesia III. Lisboa: Edições 70.




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